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Indiferença: Sina de Vira-latas

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Fátima Guedes*

Não é tão simples ignorar fatos e realidades conflitantes quando nossas percepções vão além da materialidade. Cotidianamente nos deparamos com crueldades incomuns contra categorias rotuladas inferiores como a Mãe Terra e seus elementos constitutivos – florestas, rios, bichos, microrganismos… Tal rotulação estende-se também às fêmeas (indistintamente), às populações nativas, negras, empobrecidas e similares. Em reforço à barbárie produzida pelos ditos humanos racionais, consolidam-se insensibilidades e indiferenças institucionais. 

A pauta em questão flui de meu auto despertar sobre o UNO latente e necessário nos diálogos com a Teia da Vida*, concebida por Capra (1996: 41). Em princípio, a contribuição quântica se dirige aos relacionamentos entre os seres: cada ser, independentemente da espécie, raça ou da condição é parte de um todo; não existem limitações, barreiras ou conexões menos ou mais importantes. Todas as vidas partem de um mesmo ponto comum, de um Princípio Cósmico, portanto, fundamentais para o equilíbrio e para a tão sonhada paz mundial. 

Por esse caminho, concentro meu caminhar e o conduzo à consciência coletiva no sentido de percepções sobre a realidade concreta, visível de centenas de cães largados à má sorte sobre ruas, becos e barrancos da Ilha Tupinambarana, Parintins, a 369 km de Manaus, midiatizada como “capital brasileira do folclore”. A total indiferença em nível institucional, comunitário e individual testemunhada na terra do boi-bumbá em relação a categorias inferiorizadas reflete o vazio de consciência sobre a unicidade da vida que se faz presente nas diversidades cujos ritos contribuem para o equilíbrio do Todo.  A vida de cada espécie, de cada ser é universalmente igual independente dos corpos e territórios que a abrigam. Sentimentos de dor, de alegria, assim como o bem-estar são uníssonos.

Os argumentos em referência me permitem denunciar uma realidade local bem antiga e conflitante com a unicidade da vida, cujos impactos se contrapõem ao ideário de vida digna e de qualidade fundamentado na teoria de Capra: refiro-me a negligências sobre os seres vulnerabilizados socialmente ou como anuncia o Educador Paulo Freire, “os desvalidos históricos”, dentre eles, os ditos vira-latas. Ao mesmo tempo, o coletivo sadio da Ilha do folclore vislumbra que a soma dos argumentos provoque reações acolhedoras e interventivas da parte de quem de dever, de e do direito.  

Eis a questão: iniciávamos 2022. Sonhos vários nos conduziam a uma Parintins onde o direito à vida com dignidade era o prato comum a todos os viventes e sobreviventes. O sonho, porém, durou pouco. Inesperadamente, uivos e clamores dolorosos de cadelas no cio agrediram nosso direito ao sono tranquilo; toda a Utopia em construção é mais uma fantasia que se perde no ar: uma pequena e desnutrida cadela aos gritos era arrastada por um cão de grande porte em uma das ruelas do bairro Tonzinho Saunier. Além do macho titular, mais oito concorrentes compunham aquele infeliz cortejo; tudo isso sem causar incômodos que levassem os “proprietários” desses animais tirá-los da rua e lhes dar segurança e proteção justas. 

O cenário em si clamava e clama até agora (razão dessa produção) por intervenções efetivas em prol de uma educação popular/ambiental centrada no despertar do respeito a todos os sistemas vivos, independentemente da espécie.  A situação clama também por urgência à efetivação da Lei 14.064. de 2020, sobre Crimes Ambientais.

Após o que se viu, impossível recuperar o sono e até utopisar uma Parintins para se viver e amar!… Lamentável!!!

O conjunto dessas tiranias, geralmente silenciadas, sugere amplos diálogos (gestores e comunidade) sobre compromissos sociais para com os animais em situações de risco e abandono; sugere também planejamentos participativos por uma saúde pública sem distinção de espécies… Por fim, aquela situação presenciada no início deste ano trouxera também à reflexão o real-concreto da grande maioria de fêmeas, de mulheres submetidas ao domínio de machos irracionais: muitas silenciam por acreditarem que suas vidas pertencem aos machos que as possuem; outras gritam, pedem socorro, mas, por serem fêmeas e seus corpos, segundo o mito patriarcal, pertencerem a machos dominantes, fica o dito pelo não dito; o grito pelo silêncio feminicida. Na verdade, o insano ritual contra os arquétipos femininos é milenar: nove milhões de mulheres pereceram à mercê da paranoia de inquisidores. (Faur 2015: 449)* 

Ressalto com indignação: os rascunhos aqui compartilhados são limitados: não traduzem na totalidade o volume de sentimentos absorvidos durante os gritos da cadelinha vira-lata, no cio, naquela madrugada de ano novo…

Caso a consciência do UNO alcance, ainda que de leve, os rituais político administrativos, religiosos, comunitários e folclóricos da Ilha do Boi, reafirmamos: independentemente de espécie, raça ou de condição Todas as Vidas partem de um mesmo Princípio Cósmico… A realidade mundial hoje, mais que nunca, induz à busca do equilíbrio, base da tão sonhada Paz Mundial.

 

Falares da Casa

CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Trad. Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Cultrix, 1996.

FAUR, Mirella. O Anuário da Grande Mãe. São Paulo: Editora Alfabeto, 2015.

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Uma das fundadoras da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta, Militante da Marcha Mundial das Mulheres e da Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde. Autora das obras Ensaio de Rebeldia e Algemas Silenciadas.

 

Edição: Floriano Lins

 

Fotos: Floriano Lins e Tereza Rocha

 

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